O dia em que Ratinho ensinou milhões de brasileiros a piratear CDs ao vivo na TV
O dia em que Ratinho ensinou milhões de brasileiros a piratear CDs ao vivo na TV
Em 2001, o Ratinho, protagonizou um dos momentos mais hilários e politicamente incorretos da televisão brasileira ao demonstrar, passo a passo e ao vivo, como copiar um CD em seu programa no SBT.
A “aula” incluía um gravador de CD-R, um CD original de Chitãozinho & Xororó, um CD virgem de 35 centavos, o software de gravação Easy Creator 4, um técnico de computação chamado André e o repórter Ney Inácio, que relatou para o Ratinho tudo que era necessário para realizar a cópia. O resultado? Uma demonstração prática de pirataria transmitida para milhões de telespectadores em horário nobre.
A demonstração ao vivo
Durante o quadro, Ratinho exibiu um gravador de CD-R e explicou que qualquer pessoa poderia comprar o equipamento e um software de gravação barato. Com a ajuda do técnico André, o apresentador copiou o álbum “Alô” de Chitãozinho & Xororó, lançado em 1999, em tempo real, enquanto fazia cálculos de quanto um “camelô” poderia lucrar produzindo 1.500 CDs piratas por dia. A operação durou poucos minutos e incluiu uma comparação sonora entre o original e a cópia pirata, provando que ambos tinham qualidade idêntica.
Ratinho argumentava que copiar um CD para dar a um amigo não constituía crime, citando informações de um delegado. O repórter Ney Inácio pontuou “para quem vende, a pena é de um a quatro anos de cadeia”. O apresentador então brincou: “se fosse assim tinha que fazer muita cadeia”.
Após a gravação, ambos os CDs foram reproduzidos, o original e a cópia, mostrando que eram idênticos em termos sonoros.
O contexto da era dourada da pirataria musical
O episódio aconteceu no auge de uma crise devastadora para a indústria fonográfica brasileira. Em 2000, as vendas de discos piratas aumentaram 25% globalmente, com o Brasil figurando entre os cinco países mais afetados, ao lado de México, China, Rússia e Itália.
A popularização dos gravadores de CD-R e dos CDs virgens baratos — alguns custando menos de R$ 1 — facilitou o avanço da pirataria. O preço dos discos também não ajudava em nada o próprio mercado.
“Feliz pelo desembarque de tantos CDs bacanas na “bruzundanga”, fui até uma loja e vi o “Tecnicolor”, dos Mutantes. Preço? R$ 29,50. O Brasil deve ser o único país cujas gravadoras, lojas de discos e rádios são dirigidas por quem não gosta de música. Nessas condições, viva a pirataria. Que outro remédio?”, disse um leitor da Folha de S.Paulo em matéria publicada em maio de 2000. Naquele momento, o salário mínimo no país era de R$ 151.
A Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI) estimava que uma em cada três gravações vendidas no mundo era pirata. Foi exatamente nessa época em que o boom dos softwares de compartilhamento de músicas em MP3 ganhou forma. Programas como Napster, Emule e Ares eram algumas das opções mais populares.
Napster, Emule e Ares: relembrando o boom do compartilhamento de MP3 (e de muitos vírus) na internet
Esses softwares, em conjunto com a internet, deixaram executivos de gravadores e de associações de arrecadação de direitos autorais de cabelo em pé. Em 1999, Eduardo Bautista, presidente da SGAE, sociedade espanhola de arrecadação de direitos autorais, chegou a afimar que “a distribuição de música pela Internet é a morte do comércio de CDs”.
Em 2004, segundo a APDIF (Associação Protetora dos Direitos Intelectuais Fonográficos), foram apreendidos 17,5 milhões de CDs piratas no Brasil. O cenário era devastador: a pirataria representava 52% do mercado fonográfico brasileiro em 2003, um salto brutal se comparado aos 3% de 1997.
Houve também um levante de diversos artistas contra a pirataria de suas músicas. O caso mais emblemático foi o do Metallica contra o Napster. A banda processou o Napster em 2000 alegando violação de direitos autorais, e uma demo de “I Disappear”, faixa que fazia parte da trilha sonora do filme Missão Impossível 2, foi vazada e tocada em estações de rádio. As estações de rádio conseguiram a faixa baixando-a no Napster.

“Se O Napster pode encorajar e facilitar a distribuição de gravações pirateadas, então quem vai impedir de ocorrer o mesmo com filmes, programas para computadores, livros, revistas, jornais, TV, fotos e videogames?”, declarou na época Jack Valenti, então presidente da Motion Picture Association of America (MPA).
A banda alegou que estava tendo um prejuízo de US$ 10 milhões devido ao software de compartilhamento. Lars Ulrich, baterista do Metallica, chegou a dizer que o “intercâmbio de músicas pela Internet era uma espécie de tráfico de mercadorias roubadas”.
A decisão do processo gerou uma onda gigantesca de críticas ao Metallica. O famoso litígio, que culminou no fechamento do Napster em 2001, abriu a verdadeira caixa de pandora da disseminação de conteúdo pela internet.
Em defesa ao Napster, a cantora Kourtney Love, ex-esposa do vocalista do Nirvana, Kurt Cobain, morto em 1994, comemorou que toda uma nova geração estava tomando contato com as músicas da banda do seu falecido marido por intermédio desses softwares, e acrescentou que “não é pirataria quando jovens trocam música pela Internet, usando o Napster ou qualquer outro banco de MP3. É pirataria quando os sujeitos que administram essas empresas fazem acordo à parte com os advogados dos cartéis e donos de selos para que possam ser “amigos das gravadoras”, e não dos artistas”.

Love também disse que, em todos esses anos, o que ela tinha feito foi basicamente dar sua música de graça para as grandes gravadoras. “Por isso não tenho medo de arquivos MP3 ou de qualquer outra ameaça aos meus direitos de artista. Qualquer coisa que faça minha música atingir mais pessoas é bem-vinda”.
Vale lembrar que muitos dos relançamentos de álbuns icônicos, edições comemorativas, e até mesmo a rentabilidade dos plays de determinadas faixas nos serviços de streaming atuais, como o Spotify, não representam necessariamente montantes vultuosos para as bandas e cantores. Tudo varia segundo o contrato que foi assinado naquele momento da gravação. Principalmente numa época em que as grandes gravadoras exerciam muito poder sobre a classe artística, as masters e o controle de relançamentos ficaram com os grandes selos.
A ideia de Ratinho
Ao final do programa, o apresentador sugeriu que as gravadoras barateassem drasticamente os preços dos CDs ou conversassem com ele sobre uma “ideia fantástica” para combater a pirataria. Ratinho propunha que as empresas contribuíssem com causas sociais — como o Hospital do Câncer de Barretos e projetos no Nordeste — em troca de sua solução não revelada. A fala bem-humorada criticava o modelo de negócios da indústria musical com uma visão pragmática sobre a impossibilidade de conter os camelôs.
A ironia do episódio reside no fato de que, ao tentar expor o problema da pirataria, Ratinho acabou fornecendo um tutorial detalhado para milhões de brasileiros. O programa documentou não apenas a simplicidade técnica da cópia, mas também a matemática do lucro ilegal, calculando que um operador com 10 equipamentos poderia faturar R$ 4.500 por dia.
Muitos daqueles que tornaram naquela época a pirataria de CDs um negócio, tinham os famosos gabinetes com baias ocupadas por gravadores. Você lembra disso?
Nos anos 2000, isso era ouro para os pirateiros: homem encontra gabinete com 8 gravadores de DVD
Legislação e repercussão
O artigo 184 do Código Penal, citado por Ratinho durante o programa, passou por reformulações significativas para acompanhar as novas tecnologias. Em 2003, a Lei nº 10.695 endureceu as penas para crimes de violação de direito autoral, estabelecendo reclusão de dois a quatro anos para quem reproduzisse obras com intuito de lucro direto ou indireto.
O parágrafo 3º do artigo passou a criminalizar especificamente a distribuição digital mediante internet, cabo, fibra ótica e satélite. Curiosamente, a mesma lei incluiu o parágrafo 4º, que descriminalizou a cópia de obra intelectual “em um só exemplar, para uso privado do copista, sem intuito de lucro”.
Essa exceção validava parcialmente o argumento que Ratinho apresentou ao vivo: copiar um CD para uso pessoal não constituía crime, desde que sem fins lucrativos. O problema estava na demonstração pública do procedimento técnico, que acabou funcionando como manual para operações comerciais ilegais.
O episódio do Programa do Ratinho tornou-se emblemático de uma era em que a tecnologia de consumo avançava mais rápido que a capacidade da indústria de se adaptar.





Leave A Comment
You must be logged in to post a comment.