Humanos treinam máquinas que as substituem: o paradoxo da nova corrida por IA
Humanos treinam máquinas que as substituem: o paradoxo da nova corrida por IA
Uber paga motoristas para ensinar carros autônomos. OpenAI contrata ex-banqueiros para treinar modelos de finanças. Amazon equipa entregadores com óculos inteligentes conectados a dados de automação. O cenário que parecia ficção científica é real: gigantes da tecnologia estão recrutando trabalhadores humanos para construir a própria inteligência artificial que pode eliminá-los do mercado.
Não é à toa que essa contradição ganhou apelidos irônicos: “treinar nossos substitutos robóticos”, como descreveu a agência Axios. Mas por trás da ironia existe uma realidade econômica brutal. O mercado global de anotação de dados — o trabalho de etiquetar, limpar e estruturar informações para treinar IA — cresceu de US$ 3,99 bilhões em 2024 para US$ 4,94 bilhões em 2025, com projeção de atingir US$ 13,82 bilhões até 2030. A taxa de crescimento anual é de 23%, evidenciando a urgência das corporações em encontrar mão de obra para alimentar seus modelos.
O mecanismo do novo trabalho invisível
Quando a Uber lançou em outubro seu programa “Digital Tasks”, permitiu que motoristas ganhem dinheiro fotografando ruas, gravando áudio e respondendo perguntas durante seu tempo livre. Os dados coletados alimentam sistemas de visão computacional e modelos de linguagem natural. Aparentemente flexível. Apenas quando você entende o contexto — a Uber está testando carros autônomos em Atlanta e Austin — o propósito se torna cristalino: os dados que os motoristas fornecem ajudam a treinar a tecnologia que eventualmente não precisará deles.
“Drivers pediram mais formas de ganhar, mesmo quando não estão na estrada,” justificou Dara Khosrowshahi, CEO da Uber, em comunicado. O que omitiu: a companhia considera que a perda de trabalho com veículos autônomos será “um grande problema social”. Este programa é sua resposta preemptiva.
A OpenAI adotou estratégia semelhante, porém segmentada por expertise. Contratou mais de 100 ex-banqueiros de JPMorgan, Morgan Stanley e Goldman Sachs para treinar um modelo identificado como “Mercury”, que automatizará tarefas de entry-level em análise financeira. Em paralelo, trabalha com estudantes de música da Juilliard para ensinar composição. A lógica: recrutar o conhecimento de quem atualmente realiza o trabalho que deseja automatizar.
O argumento da bifurcação
Vasant Dhar, professor do NYU Stern com mais de 30 anos de pesquisa em machine learning, oferece uma perspectiva diferente ao estudar o futuro do trabalho na era da IA. Dhar reconhece que historicamente, o impacto da tecnologia na humanidade é que ela nos força a melhorar. Mas ele identifica uma bifurcação clara: entre aqueles dispostos a trabalhar com IA e aqueles que não estão.
“O que estou vendo é que a IA apenas fica melhor,” disse Dhar à Axios. “Somos desafiados a elevar nosso jogo. Alguns de nós elevam nosso jogo. Muitos não.”
Ele não especula sobre cenários de mais de uma década, mas o padrão é evidente: não basta reconhecer a mudança — é necessário ativamente abraçá-la. Ironicamente, treinar IA torna-se um caminho de adaptação — até que não seja mais necessário
Esta é parte de uma corrida desenfreada para aperfeiçoar IA com verdadeira expertise humana para que ela faça de graça o que colaboradores juniores fazem agora — e, depois, o que profissionais sênior ganham bons salários para fazer.
A velocidade da consolidação
O que impressiona não é a estratégia isolada de uma empresa, mas a sincronicidade. Múltiplos gigantes tech executando táticas idênticas simultaneamente transforma isso de anomalia em padrão emergente. Amazon, que já treinou 21 milhões de pessoas em habilidades de computação em nuvem, agora expande para IA. Não apenas oferece cursos públicos; discretamente, coleta dados através de óculos AR para entregas.
A velocidade importa porque deixa pouco espaço para adaptação social. Gerações passadas tiveram décadas para se reconverter quando fábricas automatizaram. Aqui, o ciclo é de meses.
O ponto de inflexão
Ninguém sabe exatamente quando o pêndulo bate: quando esses sistemas ficam tão sofisticados que treinadores humanos não são mais necessários. Alguns estudiosos sugerem três a cinco anos. Outros, mais prudentemente, evitam prognósticos.

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