A queda do Dreamcast: relembre como foi o turbulento anúncio do fim do último console da SEGA

A queda do Dreamcast: relembre como foi o turbulento anúncio do fim do último console da SEGA

Em 27 de novembro de 1998, a Sega lançou no Japão um console que parecia antecipar o futuro. O Dreamcast chegava com gráficos impressionantes, suporte online nativo e até um kit de desenvolvimento baseado no Windows CE, criado em parceria com a Microsoft, que permitia a estúdios acostumados ao PC portar seus jogos com mais facilidade. Essa combinação parecia o pacote certeiro para posicionar a empresa no topo da indústria. Porém, menos de três anos depois, a própria Sega anunciaria o fim da produção e sua transformação em desenvolvedora third-party.

O destino do Dreamcast não foi definido apenas por suas especificações técnicas, mas também por um contexto de décadas de disputas internas, mudanças de estratégia e um mercado cada vez mais competitivo. Neste artigo vamos entender o que levou à queda do Dreamcast. Mas primeiro vamos contextualizar a trajetória da Sega até este lançamento.

Do caça-níquel ao Mega Drive

A história da Sega começa bem antes do videogame, em maio de 1940, com a fundação da Standard Games, no Havaí, por Martin Bromley, Irving Bromberg e James Humpert. A empresa fornecia máquinas caça-níqueis e outros jogos operados por moedas para bases militares americanas. Após a Segunda Guerra, os fundadores venderam a Standard Games e criaram a Service Games, com o mesmo foco.

A curiosa origem da SEGA com as máquinas caça-níqueis — e como uma lei mudou completamente os rumos da empresa

Em 1951, tudo mudou com a aprovação da Lei Johnson, que restringia o transporte interestadual de máquinas de jogo nos EUA. Para contornar a proibição, Bromley enviou representantes ao Japão, criando a Service Games of Japan em 1952 para atender as bases militares americanas no país. Dois anos depois, o nome “Sega” — abreviação de Service Games — apareceu pela primeira vez em uma máquina caça-níqueis Diamond Star.

A empresa passou por reorganizações e, em 1965, fundiu-se com a Rosen Enterprises, de David Rosen, passando a se chamar Sega Enterprises Ltd. Sob a liderança de Rosen, o foco migrou para o mercado civil japonês, investindo em jukeboxes, pinballs e, a partir de 1973, máquinas de arcade como a Pong-Tron.

O salto para os consoles veio nos anos 80, com o SG-1000 e, em seguida, o Master System, lançado para enfrentar o Nintendo Entertainment System. Embora não tenha superado o rival, consolidou a marca no mercado doméstico. O grande ponto de virada chegou em 1988, com o Mega Drive (Genesis nos EUA) e uma estratégia agressiva contra a Nintendo, liderada por Tom Kalinske na divisão americana. O sucesso no Ocidente contrastou com o desempenho modesto no Japão, expondo desde cedo a divisão interna entre as filiais da empresa.

O fiasco do Saturn e a busca por redenção

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Com o Mega Drive no fim do ciclo, a Sega apostou no Sega Saturn, lançado em 1995 nos EUA. O console era caro, complexo para desenvolvedores e carecia de um apelo claro ao consumidor. O resultado foi um baque financeiro: em 1998, a empresa registrou perdas de US$ 242 milhões 

A crise abriu espaço para mudanças. Bernie Stolar, ex-Sony, assumiu a divisão de hardware nos EUA em 1997, decretou o fim do Saturn e mobilizou esforços para um novo console. Duas equipes competiram pelo projeto — uma no Japão e outra nos EUA. A proposta japonesa venceu, originando o Dreamcast!

Dreamcast: inovação à frente do tempo

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O Dreamcast estreou no Japão em novembro de 1998 e chegou aos EUA em setembro de 1999. Foi o primeiro console de sua geração, com recursos que pareciam vindos do futuro:

  • Capacidades online integradas, com modem embutido (33,6 kbps no Japão e 56 kbps nos EUA) e suporte a partidas multiplayer pela internet via SegaNet e outros serviços compatíveis.
  • Kit de desenvolvimento opcional baseado no Windows CE, criado em parceria com a Microsoft, que permitia a estúdios vindos do PC portar jogos com mais facilidade. O sistema principal do console, no entanto, era proprietário da Sega.
  • Serviços online com recursos de comunidade, como rankings, leaderboards e troca de dados, acessíveis por meio do navegador integrado e de jogos compatíveis.
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A Sega of America também apostou em um marketing provocativo para o Dreamcast, representado, por exemplo, na imagem abaixo, de novembro de 2000. 

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Em meio a problemas que dificultavam o abastecimento do PS2 nos EUA, a Sega enviou postcards provocativos para a imprensa, varejistas e analistas. Um dos cartões trazia a imagem de uma criança ruiva fazendo careta, com a mensagem sarcástica:

Our deepest condolences to Sony on their PS2 shipping difficulties.” (“Nossas mais profundas condolências à Sony por suas dificuldades de envio do PS2.”).

 

Segundo Joe Culley, vice-presidente de marketing da Sega na época, a iniciativa tinha um objetivo claro: lembrar aos varejistas que, ao contrário do PS2, o Dreamcast estava disponível para venda e com custo mais acessível.

Lançamento e recepção

No Japão, as vendas iniciais foram boas, mas logo desaceleraram. Nos EUA, o lançamento foi um sucesso, com 500 mil unidades vendidas em duas semanas.

E no Brasil?

No Brasil, o Dreamcast chegou em outubro de 1999, distribuído oficialmente. O preço de R$ 799 era elevado para a época, equivalente a cerca de R$ 3.976 em valores de agosto de 2025. 

A versão nacional vinha sem jogo incluso e sem o modem para conexão online, vendido separadamente só em 2001. Além do custo, a concorrência com o PlayStation 1 pirata minava as vendas. Curiosamente, a pirataria no próprio Dreamcast acabou estimulando um pico tardio de vendas no país, contrariando a crença inicial de que o GD-ROM, mídia do Dreamcast, era impenetrável.

A Tectoy lançou no Brasil mais de 30 jogos, incluindo Shenmue e Resident Evil: Code Veronica, antes de encerrar a produção por volta de 2004.

Conflitos internos e decisões fatais

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Relatos indicam que a Sega do Japão (SOJ) já havia decidido encerrar o Dreamcast antes mesmo de seu sucesso nos EUA, devido ao fraco desempenho no Japão.

A relação desgastada entre Sega of America (SOA) e SOJ, que já vinha desde os tempos de Kalinske, resultou em falta de coesão estratégica. Casos como o desenvolvimento de Shenmue, com custo reportado de até US$ 70 milhões e atrasos constantes, refletem essa tensão.
O alto investimento não retornou em vendas — Shenmue vendeu cerca de 1 milhão de cópias.

A derrocada financeira

De acordo com o relatório anual da Sega de 2000:

  • A empresa fechou o ano fiscal com perdas líquidas de 42,88 bilhões de ienes (aprox. US$ 404 milhões na época).

  • A divisão de consoles representava quase 80% do prejuízo total.

  • Em 2001, o prejuízo acumulado já ameaçava seriamente o caixa da companhia.

O adeus amargo

No dia 31 de janeiro de 2001, a Sega anunciou oficialmente que encerraria a produção do Dreamcast até março daquele ano. A decisão, segundo o relatório fiscal, implicaria perdas extraordinárias de 80 bilhões de ienes (cerca de US$ 689 milhões à época), resultando em um prejuízo líquido consolidado de 58,3 bilhões de ienes no exercício fiscal que terminaria em 31 de março de 2001 — um rombo ainda maior que as previsões de analistas, que esperavam perdas em torno de 50 bilhões de ienes.

O documento reforça que manter o equilíbrio entre o negócio de hardware e software, garantindo ao mesmo tempo a lucratividade, havia se tornado “extremamente difícil”. A solução estratégica foi abandonar de vez o hardware e focar em desenvolvimento de conteúdo para múltiplas plataformas, incluindo rivais diretas como Nintendo, Sony e a estreante Microsoft.

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“A SEGA CORPORATION vem constantemente criando formas inovadoras de entretenimento em seus produtos de consumo e negócios de diversão, conquistando uma posição sólida no setor de entretenimento nos mercados do Japão, Estados Unidos e Europa. No entanto, em 31 de janeiro de 2001, descontinuamos a produção do Dreamcast, que vinha travando uma batalha difícil, e agora concentraremos nossos recursos corporativos nos negócios de conteúdo e diversão”, trecho do relatório da SEGA sobre a decisão de encerrar o Dreamcast.

A injeção de 85 bilhões de ienes feita por Isao Okawa, então presidente e chairman da Sega, que faleceu dois meses depois do anúncio do fim do Dreamcast, foi decisiva para conter o prejuízo e permitir a transição. Okawa abriu mão de ações para ajudar a empresa a enfrentar a condição financeira catastrófica. 

Ao mesmo tempo, a empresa já anunciava novos jogos não só para consoles concorrentes, mas até para dispositivos como o Palm Pilot, apostando no crescimento do mercado de PDAs — que na época tinha a Palm com 78% de participação. O corte de postos de trabalho também foi inevitável. 30% dos colaboradores, cerca de 700 funcionários, foram demitidos. 

O balanço de 2001 e a repercussão na imprensa, como nessa matéria da Wired publicada no dia do anúncio oficial da “morte” do Dreamcast, deixam claro o contraste: em pouco mais de dois anos, o primeiro console 128-bit com capacidade online integrada passou de promessa revolucionária a símbolo de fracasso comercial.

Até setembro de 2000, haviam sido vendidos 5,87 milhões de unidades do Dreamcast no mundo, frente aos 79,6 milhões de PlayStations da Sony no mesmo período.

Aquele que teve que comunicar a decisão

O fim do Dreamcast não foi apenas o encerramento de um produto, mas um ponto de virada irreversível na trajetória da Sega. Anos depois, um dos protagonistas daquele período revisitou as decisões que levaram ao colapso, revelando um misto de orgulho pelo console e frustração pelas circunstâncias que o cercaram.

Em entrevista de 2018 ao The Guardian (dividida em duas partes: parte 1, parte 2), Peter Moore — presidente e COO da Sega of America na época — descreveu o Dreamcast como a “última grande chance” de recuperar a confiança do mercado e manter a Sega no jogo contra a iminente chegada do PlayStation 2.

“O lançamento nos EUA era a última melhor oportunidade para colocar o Dreamcast de pé”, relembrou, destacando que a estratégia americana foi mais agressiva que a japonesa ou a europeia, com campanhas como It’s Thinking, presença no MTV Music Awards e turnês ao lado de bandas como Linkin Park e Limp Bizkit.

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Peter Moore

Moore admitiu que o console viveu “18 meses fenomenais de dor, euforia e esperança”, mas que a falta de apoio de editoras-chave — especialmente a EA — e o marketing poderoso da Sony minaram o avanço. No Natal de 2000, as metas de vendas impostas pelo Japão não foram atingidas e a pressão se tornou insustentável: manter o hardware exigiria um investimento que poderia levar a Sega à falência.

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“Em 31 de janeiro de 2001, dissemos que a SEGA estava saindo do hardware — e, de alguma forma, coube a mim fazer esse anúncio, não aos japoneses. Tive que demitir muita gente; não foi um dia agradável”, relatou. Segundo ele, a SEGA vendia entre 50 mil e 100 mil unidades de Dreamcast por dia naquele período, mas não o suficiente para alcançar a massa crítica necessária frente ao PS2. “A empresa podia continuar injetando dinheiro e ir à falência, ou viver para lutar outro dia. Escolheu a segunda opção.”

Para Moore, o Dreamcast foi um precursor da próxima geração, especialmente pelo pioneirismo no jogo online com o SegaNet e títulos como NBA 2K1 e Phantasy Star Online.

“Nunca conheci alguém que se arrependesse de comprar um Dreamcast”, disse. “Foi um grande console, mas o tempo e o mercado não estavam do nosso lado.”, concluiu.

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