O dia em que Steve Jobs foi confrontado ao vivo por um desenvolvedor — e deu uma lição sobre negócios e comunicação
A tomada de decisões implica no desagrado. É impossível, e ao mesmo tempo contraproducente, agradar a todos, principalmente quando essas decisões estão relacionadas ao mundo corporativo.
Para um bem maior da manutenção do negócio, considerando a ótica que o gestor entende como a adequada naquela circunstância, deixar projetos pra trás e tomar outros rumos é fundamental, ainda mais quando o panorama não é nada animador naquele momento.
A Apple à beira do colapso
Isso aconteceu com a Apple. A hoje trilionária gigante de Cupertino flertou com a falência na década de 90, devido a uma série de decisões diretivas contestáveis e produtos que não emplacaram. Um “alinhamento de planetas” trouxe de volta para a casa o seu cofundador, Steve Jobs, em 1996, após 11 anos afastado.
Inicialmente como um consultor de Gil Amelio, que ocupava a presidência.
WWDC 1997: o confronto inesperado
Alguns meses após seu retorno, em maio de 1997, Jobs, ainda na posição de consultor, participou da WWDC daquele ano e fez um bate-papo aberto para responder questionamentos dos devs. Provavelmente Jobs, e nem os demais presentes no San Jose Convention Center (hoje conhecido como San Jose McEnery Convention Center), imaginariam o que estava prestes a acontecer. Uma situação que chamamos de “saia justa”. Jobs foi confrontado diretamente por um dos desenvolvedores, e deu uma resposta à la Steve Jobs, com uma de suas reflexões sobre a maneira como negócios precisam ser geridos.
O estilo “ceifador” de Jobs
Uma das marcas do retorno de Jobs para a época foi o seu modo “ceifador” de coisas que não estavam funcionando e alteração no rumo da Apple visando salvá-la da falência. Jobs precisou até mesmo costurar um acordo com Bill Gates, para que a Microsoft investisse US$ 150 milhões na Apple, determinante para que a empresa seguisse de pé.
E dentre o que foi descontinuado estava o OpenDoc, um framework desenvolvido há muito tempo, o que contou, evidentemente, com o engajamento dos desenvolvedores nisso. Segundo palavras do próprio Jobs, a decisão de dar um “tiro na cabeça do OpenDoc” foi tomada logo após seu retorno para a Apple e foi oficializada em março de 1997.
A frustração dos desenvolvedores
A decisão gerou uma frustração na comunidade dos desenvolvedores, algo completamente compreensível. Quando a WWDC 1997 ocorreu, apenas 2 meses após a Apple cortar o projeto, o tema ainda estava fervilhando na comunidade. E um deles resolveu usar desse espaço direto de comunicação com o cara que trouxe essa ideia de acabar com o OpenDoc para manifestar seu desagrado de forma bem enfática.
Robert Hamisch: o homem que confrontou Jobs
Esse homem foi Robert “Bob” Hamisch, que nos anos 90 trabalhava como consultor em uma empresa de segurança da informação que chegou a prestar serviços para a Sun Microsystems.
Ele não era um nome de grande proeminência na comunidade de desenvolvedores, mas ficou marcado como alguém que teve coragem para manifestar aquilo que achava, diretamente para Jobs.
A tensão no ar
Steve Jobs, conhecido por sua grande capacidade como comunicador, percebeu de cara o rumo que aquilo tomaria. Hamisch iniciou sua fala dizendo: “Mr. Jobs, você é um homem brilhante e influente”. De braços cruzados, Jobs deu uma risada sarcástica e disparou: “Lá vem”.
A plateia também captou que aquilo rapidamente se transformaria em um momento meio hostil. Do nível que é possível cortar a tensão com uma faca. E isso ficou claro com a frase seguinte do desenvolvedor:
“É triste e fica claro que, em vários aspectos que você discutiu, você não sabe do que está falando. Eu gostaria, por exemplo, que você expressasse em termos claros como o Java, em qualquer uma de suas encarnações, aborda as ideias incorporadas no OpenDoc e, quando terminar, talvez você possa nos contar o que você tem feito pessoalmente nos últimos sete anos.”
A fala não era algo apenas sobre o OpenDoc, destilava um certo desdém sobre o que Jobs andava fazendo com a própria carreira nos últimos anos, e como seu retorno estava estragando a dedicação de muitos nos projetos enquanto ele estava fora.
A resposta estratégica de Jobs
O caos estava instaurado. A plateia tensa e Jobs, sentado, toma um gole d’água, e adota o estilo de comunicação que o consagrou. Um modo cadenciado, realmente refletindo sobre o que foi dito e na maneira como sua resposta será construída, para aquela situação. Lembre-se: estamos diante de um cenário em que a Apple passava por um momento tenebroso, de incerteza. Uma resposta mal colocada, propagada pela mídia, poderia ser algo altamente danoso para a imagem de uma companhia que tentava se reerguer.
Jobs começou sua fala enfatizando que “você pode agradar algumas pessoas em parte do tempo, mas… não todas”. Em seguida, admitiu que o questionamento de Hamisch era válido, e que ele tinha razão em certos pontos. “Uma das coisas mais difíceis quando você tenta promover mudanças é que pessoas como este cavalheiro estão certas em alguns aspectos”, disse Jobs.
Uma aula de comunicação
Além de uma possível preocupação real com a reivindicação do desenvolvedor, o início da fala de Jobs adota uma poderosa estratégia de comunicação: endossar parte do discurso do rebatedor, mas de uma forma que já encaminhe para o rumo que você pretende seguir e, ao mesmo tempo, retire parte da camada hostil da pergunta inicial. Apenas Jobs e a Apple perderiam caso a reação do executivo seguisse no mesmo tom da pergunta.
Jobs reconheceu a importância do OpenDoc e admitiu que não o conhecia em detalhes. “Há coisas na vida sobre as quais eu não faço a menor ideia do que estou falando.” Ao reforçar o ponto do desenvolvedor, sobre essa carência de todo o conhecimento técnico para fazer uma conversa apenas por esse ponto, torna automaticamente o executivo da Apple como “vulnerável”, algo que gera simpatia da audiência, principalmente daqueles que não estão presos apenas ao mundo técnico.
De volta ao que realmente importa
Em seguida, Jobs direcionou a fala para um lado reflexivo que poucos dominaram como ele no mundo corporativo.
Ao invés de tentar rebater a questão técnica com outros detalhes técnicos – algo que ele não teria condição alguma de fazer – Jobs levou o debate para um nível que está muito acima do raio de atuação de Hamisch naquele momento: a visão empresarial e estratégica para o negócio.
Jobs enfatizou que a questão mais difícil era como tecnologias como o OpenDoc poderiam se encaixar em uma visão mais coesa e ampla que vai permitir que você venda oito bilhões de dólares, dez bilhões de dólares por produto por ano.
Foco na experiência do usuário
Em sua visão, uma das coisas que ele acabou descobrindo é que você precisa começar com a experiência do usuário e trabalhar de trás para frente até a tecnologia.
“Você não pode começar com a tecnologia e tentar descobrir onde você vai tentar vendê-la. E eu cometi esse erro provavelmente mais do que qualquer outra pessoa nesta sala. E eu tenho as cicatrizes para provar isso, e eu sei que esse é o caso.”
Essa visão orientada ao usuário era o grande foco para a Apple naquela circunstância.
“Enquanto nós estávamos tentando criar uma estratégia e uma visão para a Apple, começamos com quais benefícios incríveis podemos oferecer ao usuário, até onde podemos levar o usuário. E não começando com ‘vamos sentar com os engenheiros e descobrir que tecnologia incrível nós temos e então como vamos comercializá-la’.”
O foco no produto, orientado pela experiência do usuário, seria a grande marca da Apple nos anos seguintes. Foram os produtos, juntamente com um marketing eficaz e a percepção dos usuários de que aquilo tinha valor, que salvou a Apple e fez com que o iPod, iPhone e iPad se transformassem em produtos lendários.
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