
1999: o ano em que o Brasil tentou culpar os games pela violência – e baniu 6 jogos de uma vez, incluindo Mortal Kombat e Doom
Em dezembro de 1997, o Ministério da Justiça proibiu no Brasil a distribuição, divulgação e venda do jogo Carmageddon, distribuído na época no país Brasoft. Tudo começou a partir de uma reivindicação do Denatran (Departamento Nacional de Trânsito), que informou ao Departamento de Defesa do Consumidor que foram feitas inúmeras denúncias de que o jogo incitava a violência.
Carmageddon, lançado no mesmo ano da proibição no Brasil, tinha como premissa básica ganhar pontos atropelando pedestres. A temática serviu como meio para uma associação de causa e efeito entre a violência nas estradas do Brasil e o jogo. Como a imprensa destacava na época, era um caso inédito no país.
Em outros países também aconteceram retaliações ao jogo. Na Inglaterra, onde Carmageddon foi desenvolvido, a SCI, responsável pelo jogo, teve que trocar as pessoas por seres com sangue verde e colocar a classificação etária para 18 anos, senão não poderia ter feito o lançamento.
Já na Alemanha, a versão original foi proibida, e a saída encontrada foi substituir os pedestres por robôs.
Mas a censura com Carmageddon no Brasil em 1997 foi só a ponta do iceberg do que aconteceria dois anos depois, em 1999. Agora, não seria apenas um jogo proibido – seriam seis. Entre eles, clássicos como Mortal Kombat, Doom e Duke Nukem 3D.
Neste artigo, vou relembrar esse episódio marcante que acabou sendo diretamente responsável pela implementação do sistema de classificação indicativa no Brasil.
O contexto
Antes de passarmos diretamente para o ponto exato da proibição dos jogos, é importante que você seja transportado para aquele contexto, já que acontecimentos anteriores foram fundamentais, e agiram como “muleta”, para correlacionar problemas sociais aos jogos.
No final dos anos 1990, instalou-se um certo pânico em torno dos jogos violentos. Esse temor foi alimentado por acontecimentos trágicos, como o massacre na Columbine High School, nos Estados Unidos, em 20 de abril de 1999, que resultou na morte de 12 alunos e um professor. Os dois jovens responsáveis pelo ataque, Eric Harris e Dylan Klebold, com 17 e 18 anos na época, respectivamente, tiraram a própria vida logo em seguida
Poucos meses depois, em 3 de novembro, o estudante de medicina Mateus da Costa Meira entrou em um cinema no Shopping Morumbi e atirou contra a plateia, matando três pessoas e ferindo outras cinco. O crime ficou conhecido como “Massacre do Shopping Morumbi”.
Em momentos trágicos, envoltos em uma narrativa sinistra, que amedronta e aflige qualquer um, a comoção toma conta e inicia-se o processo de correlação, tentando encontrar algo que poderia ter motivado – ou dado gatilho, usando um termo mais atual – para aquilo.
A cobertura da imprensa sobre o caso logo encontrou que o criminoso era fã de jogos violentos, especialmente Duke Nukem 3D, jogo que traz uma cena de tiroteio dentro de um cinema. Fato que rapidamente foi transformado em catalisador para o evento real.
‘Mata, mata! Atira na testa!’
Aliado a esse sentimento de revolta e à comoção popular, ativistas e parlamentares iniciaram um processo de “fritura” contra jogos considerados violentos. Um vereador de Belo Horizonte foi crucial para o banimento dos jogos que veríamos acontecer em seguida.
Betinho Duarte, que na época era vereador de Belo Horizonte pelo PSB-MG, relatou que ficou em choque ao testemunhar crianças brincando de forma agressiva enquanto jogavam GoldenEye 007.
Ele diz ter ficado alarmado ao ouvir a seguinte frase: “Ouvi os amigos do meu filho gritando: ‘Mata, mata! Atira na testa!’. Corri para ver o que era e me deparei com eles jogando um game do James Bond em que era preciso atirar na testa para ganhar pontos”.
Esse momento foi o estopim para que Betinho reunisse um dossiê com cenas de jogos violentos, incluindo um vídeo intitulado “Educando para matar”, destacando a violência de vários títulos da época.
A mobilização política e as primeiras ações
A repulsa aos jogos violentos foi ganhando força através da organização não governamental TV Bem (Instituto de Defesa do Telespectador), coordenada por Betinho, e da Comissão de Educação da Câmara.
E com um detalhe: isso tudo já estava acontecendo antes mesmo do Massacre do Shopping Morumbi.
Conforme informou a Folha de S.Paulo em matéria publicada em 13 de agosto de 1999, 4 meses antes do massacre, aconteceu uma reunião no dia anterior com o ministro da Justiça, José Carlos Dias, para formalizar o pedido da suspensão da comercialização de qualquer jogo violento, a intervenção da Polícia Federal para coibir a venda clandestina de produtos já proibidos, além de uma campanha nacional para informar os pais sobre o teor das fitas disponíveis nas locadoras de todo o país.
Atente-se: a meta original de Betinho era suspender a venda não somente dos seis jogos em questão, ele queria frear a comercialização de qualquer jogo violento.
Em seu relatório, Betinho listava quase 200 títulos de jogos violentos, entre eles a continuação de Carmageddon, lançada em 1998.
Originalmente, a ONG presidida por Betinho estava focada na qualidade da programação televisiva, mas acabou sendo utilizada para combater os excessos dos jogos.
Além do apoio de um grupo de 50 pessoas formado por psicólogos, pedagogos e educadores, Betinho contou com a ajuda de Maria Elvira, que era deputada federal pelo PMDB-MG. Juntos, apresentaram uma representação em 16 de novembro de 1999 ao Ministério Público Federal (MPF) contra os jogos violentos.
A base argumentativa deles era de que a livre venda dos jogos violentos feria a legislação de proteção à infância e adolescência. Eles citaram, por exemplo, o artigo 227 da Constituição Federal, que impõe ao Estado o dever de manter crianças a salvo da violência. Também mencionavam possíveis infrações ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e ao Código de Defesa do Consumidor, em relação à propaganda de violência.
Esse desejo pela proibição dos jogos violentos vinha até mesmo antes do que aconteceu com Carmageddon em 1997. Nesse documento do Diário da Câmara dos Deputados, de fevereiro de 1999,é possível observar que já em 1996, Herculano Anghinetti, então Deputado Federal (PPB/MG), tinha como projeto de lei “proibir a fabricação, importação e comercialização de jogos eletrônicos e programas de computador de conteúdo obsceno ou violento”.
Efeito Rápido: Proibição Determinada
As denúncias de Betinho Duarte e Maria Elvira tiveram efeito rápido. O Ministério Público Federal em Minas Gerais ingressou com uma Ação Civil Pública contra a União (especificamente o Ministério da Justiça), pedindo a retirada dos jogos violentos do mercado nacional.
O caso caiu na 3ª Vara Federal de Belo Horizonte, sob responsabilidade da juíza Cláudia Maria Resende Neves Guimarães. Em 10 de dezembro de 1999, a juíza proferiu a decisão liminar determinando a suspensão da comercialização e distribuição, em todo o território nacional, de cinco jogos – que rapidamente receberam mais um, formando uma lista com seis títulos:
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DOOM
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Duke Nukem 3D
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Mortal Kombat
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Blood
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Requiem: Avenging Angel
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Postal
Na sentença, a juíza acolheu integralmente os argumentos do MPF, entendendo que a livre venda desses títulos atentava contra a Constituição e a proteção de crianças.
A decisão também estabeleceu uma multa diária de R$ 20 mil para quem descumprisse a ordem de retirada dos jogos de circulação, e determinava que o Ministério da Justiça estabelecesse critérios de classificação etária para todos os jogos eletrônicos no prazo de 120 dias. O tal sistema de classificação viria, não no prazo, já que foi concretizado apenas em outubro de 2001, estabelecendo quatro categorias: livre, inadequado para menores de 12, 14 e 18 anos.
Em cumprimento da decisão, foi assinada a Portaria nº 724, de 15/12/1999, publicada no Diário Oficial em 17/12, proibindo a venda e distribuição desses jogos no país.
Impacto no Mercado e na Comunidade
A decisão aumentou ainda mais o debate sobre os jogos. Com uma dose cavalar de sensacionalismo da mídia, os jogos violentos foram jogados aos leões, que devoraram não apenas a diversão de muitos como também o lucro de lojistas.
Imediatamente após a portaria, as lojas de games e eletrônicos foram notificadas de que aqueles títulos estavam proibidos. Muitas lojas realmente removeram os produtos, enquanto outras os esconderam. Revendedores oficiais e distribuidores, como a Brasoft, enfrentaram prejuízos com estoque encalhado. A empresa seguiu com o mesmo argumento que usou lá em 1997, quando Carmageddon foi banido: “Não acreditamos que depois de jogar Carmageddon alguém vai sair atropelando pessoas.”
A proibição gerou revolta entre consumidores e também fortaleceu a pirataria, com a venda dos jogos para PC no mercado paralelo, já que as versões oficiais estavam proibidas.
Revistas especializadas em games foram contrárias à ação. Alguns editoriais iam na direção de que era uma “caça às bruxas” contra os games, e que os jogos estavam sendo usados como bode expiatório para problemas e violências sociais muito mais complexos.
Na prática, a proibição foi considerada ineficiente. Embora atuasse duramente no mercado físico, as autoridades fiscalizadoras brasileiras tinham acesso limitado às atividades online. Lembre-se: estamos falando de 1999, e a internet comercial no Brasil havia chegado apenas em 1995. Tudo ainda era muito incipiente em relação à internet e à forma de lidar com ela.
Deja-vu
Em 2001, com o sistema de classificação indicativa, as restrições foram revistas. Mas o Brasil não parou por aí: em 2008 foi a vez de Counter-Strike e EverQuest passarem por isso, gerando até mesmo um protesto no dia 2 de fevereiro daquele ano, no Museu de Arte de São Paulo, pela chamada “liberdade gamer”.
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